A Psicanálise é uma obra que
passa por uma transição em busca de maior transparência e rigor
Em maio desse ano comemoramos
os 150 anos de nascimento de Freud. Em vários países, o ano será dedicado a uma
reflexão sobre o impacto do pensamento freudiano sobre a nossa maneira de
encarar a subjetividade e de buscar aliviar o sofrimento psíquico, assim como
sua repercussão sobre a nossa maneira de encarar a cultura, em suas várias
dimensões. Pretendo examinar algumas questões da Psicanálise contemporânea,
produto de desenvolvimentos das idéias seminais de Freud e de seus seguidores
até os dias de hoje.
Um exemplo recente do nível de
debate interno que se trava no movimento psicanalítico está na discussão entre
dois dos nossos maiores pensadores: o norte-americano Robert Wallerstein e o
francês André Green. Para apreciar o significado deste intercâmbio de idéias,
publicado em 2005 no International Journal of Psychoanalysis, deve-se destacar
que cada um destes autores representa uma escola, uma forma de pensar a
Psicanálise e uma região com suas peculiaridades culturais e históricas.
Wallerstein propõe que existe
um solo comum da Psicanálise, que se encontra em sua teoria clínica, e que o
pluralismo psicanalítico, ou seja, a existência de várias teorizações ou
metapsicologias, pode não ser uma tendência duradoura. Além disso, segundo ele,
é possível evoluir para maiores convergências e ampliar desta maneira o solo
comum. Na sua visão, a Psicanálise é uma ciência e deve poder posicionar-se
entre as diferentes disciplinas científicas com metodologias reconhecíveis, que
permitam a pesquisa empírica.
Por outro lado, Green critica
esta postura de reconhecer um solo comum como uma ilusão e um mito; destaca que
pessoas de uma determinada orientação de fato não são capazes de ouvir outras e
apenas repetem seus argumentos, e propõe que a Psicanálise não seja considerada
uma ciência, nem um ramo da hermenêutica e sim uma prática baseada no
pensamento clínico que leva a hipóteses teóricas. Para ele, um possível solo
comum deve ter uma base sólida. Propõe, então, como único procedimento válido
mostrar como um material clínico consistindo e baseado na exposição de uma
seqüência de sessões e em um processo analítico revelado em suficiente extensão
possa demonstrar a afinidade entre duas diferentes teorias, as quais, destaca
ele, baseiam-se em distintas técnicas e interpretações.
Entre a existência de um solo
comum e a idéia de que isto não passa de uma ilusão e de um mito, gostaria de
propor a noção de uma zona intermediária e sugerir que a Psicanálise, neste
momento, é uma obra em construção.
Ela passa por uma transição em
que revisa e discute criticamente vários de seus pressupostos teóricos;
reexamina seus diferentes modelos de formação e busca maior transparência e rigor na formulação,
apresentação e discussão de material clínico. Com isso busca estimular e
promover a mais clara e objetiva avaliação de nossa competência clínica como
analistas, abrindo-se para diálogos com os distintos sabores e setores.
Gostaria de ilustrar, por meio
da menção a algumas contribuições recentes a áreas centrais de nossa
disciplina, exemplos do que me parece caracterizar esta zona intermediária que
estou propondo chamar de uma obra em construção.
A necessidade de reais
controvérsias em Psicanálise foi estudada por Bernardi (2002), partindo da
constatação de que a diversidade de posições teóricas, técnicas e
epistemológicas torna o debate particularmente necessário e, ao mesmo tempo,
difícil. Examinou a função das controvérsias e os obstáculos ao seu
desenvolvimento, tomando como exemplo os debates travados no Rio da Prata (em
Buenos Aires e Montevidéu) durante os anos de 1970, quando as então
predominantes idéias kleinianas (referência a -Melanie Klein) entraram em
contato com o pensamento lacaniano (Jacques Lacan). Bernardi examinou distintos
exemplos dos discursos argumentativos, usando conceitos da teoria da
argumentação. As maiores dificuldades encontradas não se relacionavam com as
características específicas às teorias psicanalíticas, mas nas estratégias
defensivas que visavam manter as premissas de cada teoria a salvo dos
argumentos do grupo oposto. Um verdadeiro debate implica a construção de um
campo argumentativo compartilhado que torne possível explicitar as diferentes
posições e verificar alguma interação entre elas, sendo guiado pela busca do
melhor argumento. Quando isto é possível, as controvérsias promovem o
crescimento da disciplina, mesmo quando falham em chegar a qualquer consenso.
No que diz respeito à discussão
de pressupostos teóricos, Mondrzac (2005) e seus colegas estudaram as
correlações entre trauma, causalidade e tempo, a partir de uma visão da mente
como um sistema complexo. Consideram que o objeto de observação do psicanalista
é a realidade psíquica, tornando necessário que possamos usar uma percepção
intuitiva, que é capaz de perceber sem a intermediação da razão, posição
implícita na proposta de Bion de observar sem memória e sem desejo e na de
Matte-Blanco, de afrouxamento das cadeias lógicas.
Contudo, no momento de formular
uma interpretação, nossa mente necessita de noções lógicas. O que parece
relevante é que essa noção corresponda à busca de um sentido e de alguma
relação entre os fatos psíquicos, porém não correspondendo à crença em uma
relação causal determinista.
Controvérsias também não faltam
quando o tema é pesquisa em Psicanálise. Recentemente temos observado
estimulantes desenvolvimentos na pesquisa conceitual, considerada por muitos,
juntamente com a pesquisa clínica, como o terreno específico da Psicanálise.
Vejamos, portanto, um exemplo de outro tipo de pesquisa, a empírica, que parece
ser também altamente relevante para nosso momento.
Como podemos estudar a
qualidade dos tratamentos analíticos? A partir desta pergunta,
Leutzinger-Bohleber e seus colegas realizaram um estudo de seguimento
naturalístico, de múltiplas perspectivas de 401 casos de análises e
psicoterapias analíticas realizadas por membros da Associação Psicanalítica
Alemã, concluídas entre 1990 e 1993. Entre 70 e 80% dos pacientes obtiveram
boas e estáveis mudanças psíquicas, conforme a avaliação deles próprios, de
seus analistas, de experts independentes, tanto analistas como não-analistas,
assim como através de questionários usualmente aplicados na pesquisa em
psicoterapia. A avaliação da saúde mental mostrou redução de custos resultante do menor número de dias-licença
por doença nos sete anos posteriores ao término do tratamento. Os resultados
obtidos por instrumentos não analíticos foram complementados pela riqueza dos
dados obtidos por meio de exame qualitativo realizado com estudos de casos.
Esse e tantos outros estudos
sobre a efetividade da Psicanálise como um método de tratamento são relevantes
em nosso indispensável diálogo com os sistemas de saúde, com a psiquiatria, com
a psicologia e com a universidade, com a qual necessitamos desenvolver um
vigoroso esforço de reaproximação, por meio de um centro internacional de
estudos de pós-graduação em Psicanálise. Também é preciso estimular nossos
jovens colegas a retomada de interesse pela carreira acadêmica e de uma
política geral de interface com as ciências humanas e as ciências da saúde.
Entre os que insistem que
nossos interlocutores por excelência são as ciências humanas e os que advogam
expandir o diálogo com as ciências da natureza, situo-me na posição de que não
podemos abrir mão de nenhum dos dois.
A neuropsicanálise é um
desenvolvimento recente que tem permitido diálogo e construção de áreas comuns
de pesquisa e estudo de conceitos básicos da Psicanálise, assim como avanços na
complexa teia de interações com as neurociências. Ao mesmo tempo, a
interlocução com a Filosofia, a crítica literária, a história e a Antropologia,
entre outros saberes, produz novos e estimulantes desenvolvimentos.
Vários de nossos autores atuais
têm voltado sua atenção para o trabalho clínico e contribuído, a partir de
diferentes perspectivas, para uma renovada valorização da clínica
psicanalítica, para a necessidade de maior rigor e atenção ao fato clínico, sua
formulação e métodos de avaliar nossos procedimentos interpretativos, além de
sua real significação para o processo analítico.
De fato, neste momento, e com
tantos desenvolvimentos, penso que nosso maior desafio consiste em recolocar a
sala de análise no papel central que lhe corresponde como o local em que se
decidirá o futuro de nossa disciplina. Acompanhando todos os demais
desenvolvimentos, é imperioso reconhecer que o centro unificador de nossa
disciplina e mesmo de nossa razão de ser é o empreendimento terapêutico e ético
que realizamos em cada um de nossos pacientes. A partir dessa premissa, estabelecemos
como prioridade na Associação
Psicanalítica Internacional desenvolver um contínuo, ambicioso e abrangente
programa científico entre as três
regiões centrado no trabalho clínico, e no estímulo ao desenvolvimento de
possibilidades de formulação, teorização e constante afinamento de nosso
instrumento básico, definido desde Freud como a nossa mente.
Todos esses desafios, distintas
áreas, necessidade de controvérsias, multiplicidade de perspectivas – algumas
aparentemente inconciliáveis – parecem-me bastante ilustrativas da noção que
proponho nesse momento, para caracterizar nosso movimento. Retomo aqui não só
esta palavra tão apropriada para descrever o que somos, um movimento
psicanalítico, que Freud usou no título de seu trabalho de 1914, como gostaria
de destacar sua epígrafe de então, o brasão da cidade de Paris, Fluctuat nec
mergitur (as ondas o abalam, mas não o afundam), uma bela metáfora que então
como agora descreve a vitalidade deste empreendimento.
Pois, afinal, como progride uma
obra, seja de engenharia, literária, científica ou uma idéia, um sistema de
pensamento, um embrião humano? De forma ordenada, harmônica, organizada,
seguindo rigorosamente um plano pré-estabelecido? Ou evolui sujeita às
condições cambi-antes do tempo, daqueles nela envolvidos, do ambiente e das
condições internas? Por que esperar da Psicanálise uma coerência interna e
externa e um funcionamento que não cobramos de nenhuma outra disciplina ou
instituição em progresso?
Assim como um embrião se
desenvolve por transformações em que assume por vezes formas grotescas e
desproporcionais, para finalmente dar origem a seres que se encontram entre as
mais belas criações da Natureza, nossa Psicanálise cresce e se desenvolve de
maneira desproporcional, em cada um de seus distintos segmentos. Por vezes
vivemos situações difíceis, trágicas, deprimentes, por vezes descremos de nossa
capacidade mental de funcionar como analistas ou como um grupo em que predomine
a racionalidade e a causa comum.
E muitas vezes somos capazes de
trabalhar em conjunto, de forma organizada e cooperativa, como muitas vezes
ocorre em nossa Associação e em nossas federações regionais e sociedades
componentes, através de discussões, encontros e publicações em que encontramos
exemplos de reais controvérsias em Psicanálise.
Como afirmou Borges em seu
livro Os conjurados: “Ao cabo dos anos observei que a beleza, como a
felicidade, é freqüente. Não passa um dia em que não estejamos, um instante, no
paraíso. Não há poeta, por medíocre que seja, que não tenha escrito o melhor
verso da literatura, mas também os mais infelizes. A beleza não é privilégio de
uns quantos nomes ilustres. Seria muito estranho que este livro… não
entesourasse uma só linha secreta, digna de acompanhar-te até o fim.”
O impacto estético de nossa
obra em construção está em sua natureza interminável, provisória, intermitente,
às vezes caótica ou desesperadora, outras vezes incompreensível ou enigmática,
algumas vezes sublime e compensadora, mas propondo a cada um a disposição
inquebrantável de um pequeno Sísifo.
Cláudio Laks Eizirik
é médico, psiquiatra e psicanalista. Presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA); membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Co-editor dos livros Psicoterapia de orientação analítica e O ciclo da vida humana.