A descoberta freudiana só se
esclarece através da posição do inconsciente. Em termos simples, nós poderíamos
dizer o seguinte: o inconsciente é essa parte do discurso concreto
transindividual que falta ao sujeito para restabelecer a continuidade de seu
discurso consciente. Note-se que Lacan diz que o inconsciente é a parte do
discurso consciente, ou seja, ele é aquilo que no discurso concreto falta, é a
falha do discurso concreto, falha que não permite ao sujeito restabelecer a
continuidade do discurso consciente. Assim, trata-se de uma falha correlativa à
descontinuidade no discurso consciente. Daí a concluir que o inconsciente é o
que falta à consciência há uma enorme distância, apesar do que fizeram as
correntes psicanalíticas que se engajaram numa linha fenomenológica (1).
Na perspectiva lacaniana, a
consciência é um efeito do inconsciente – em outras palavras, o que Lacan está
dizendo é que o inconsciente é um conceito forjado a partir do que opera para
constituir o sujeito, o inconsciente não é o que não tem o atributo ou a
virtude da consciência.
Tendo em vista delimitar o
conceito, Lacan escreveu Posição do inconsciente, de que eu lhes cito um
fragmento, comentando-o depois: “É preciso sobre o inconsciente da experiência
freudiana ir ao fato”.
O que é que isto quer dizer? Há
um fato, um fato clínico, que sustenta o inconsciente. Me antecipando, eu digo
que o fato é, por exemplo, o lapso, é a interrupção do discurso, é a repetição
através da qual o inconsciente se manifesta.
O inconsciente é um sujeito
forjado sobre o rastro do que opera para constituir o sujeito.
Vejamos agora o que é este
rastro do que opera para constituir o sujeito. Este rastro é um fato de ordem
significante. Ele está, por exemplo, no lapso entre o significante que o
sujeito efetivamente produz e aquele que ele queria ter produzido, ou seja, ele
está entre dois significantes – como, aliás, o sujeito, que como vocês sabem é
aquilo que um significante (SI) representa para outro significante (S2).
Assim Lacan nos diz: “O
inconsciente não é uma espécie definindo a realidade psíquica, o círculo do que
não tem o atributo ou a virtude da consciência”.
Pode haver fenômenos que sejam
da alçada do inconsciente sob essas duas acepções… Elas não têm entre elas
senão uma relação de homonímia.
Ou seja, aquilo que é
propriamente inconsciente – propriamente inconsciente porque não pode ser dito
– e aquilo que não tem o atributo da consciência – não o tem porque não foi
dito nem pensado – podem ambos ser da alçada do inconsciente. Quer dizer,
aquilo que não tem o atributo da consciência pode não o ter por razões
inconscientes, mas entre os dois fenômenos há apenas uma relação de homonímia e
não de identidade.
O peso que damos à linguagem
como causa do sujeito nos força a precisar que o inconsciente é estruturado
como linguagem, na medida em que o sujeito em questão é uma função do
significante. Ele é o que Lacan chamou de parlêtre, termo cuja tradução em
português é falesser, com dois esses.
Dizer que o inconsciente para
Freud não é o que assim se chama alhures acrescentaria pouca coisa, se não se
entendesse o que queremos dizer: que o inconsciente de antes de Freud não é
pura e simplesmente.
Ou seja, precisar para Lacan é
insistir em que o inconsciente é estruturado como linguagem e ainda em que o
inconsciente anterior a Freud não é pura e simplesmente.
Que há de comum entre o
inconsciente da sensação (nos efeitos de contraste ou de ilusão ditos ópticos),
o inconsciente do automatismo, que desenvolve o hábito, o inconsciente da dupla
personalidade, as ideias de uma atividade latente que se impõe como orientada
na criação do pensamento, a telepatia, que se quer relacionar a esta última, o
fundo adquirido e mesmo integrado da memória, o passional, que nos excede em
nosso caráter, o hereditário, que se reconhece em nossos dons naturais, o inconsciente
racional enfim, ou o inconsciente metafísico, que implica o ato do espírito?
Para falar dessa tematização do
inconsciente, me ocorreu comentar o que se passa na clínica, da forma como,
segundo Lacan, o inconsciente pode aí se manifestar.
Vejamos primeiramente o que
significa então a verbalização. Nela, o sujeito faz passar o evento no verbo,
quer dizer, ele torna presente o evento passado numa linguagem que permite que
o seu discurso seja ouvido pelos seus contemporâneos e, mais ainda, que supõe o
discurso presente dos contemporâneos. É assim que a recitação dessa epopeia
pode incluir um discurso de outrora, um discurso numa língua arcaica e mesmo
estrangeira, realizando assim o passado no tempo presente, com toda a animação
do ator. E este discurso arcaico, que se diz no presente, se diz sob o modo de
um discurso indireto, entre aspas, numa cena que implica não só a presença do
coro, mas também a dos espectadores.
Sublinho os termos recitação,
ato, coro, espectador, termos através dos quais Lacan estabelece uma analogia
entre o contexto analítico e o teatro, para enfatizar que na análise é de uma
epopeia que se trata, de uma epopeia narrada por um só ator a quem o analista
responde como o coro, isto é, responde da posição do Outro onde ele se encontra,
reenviando ao analisando a sua própria mensagem, de tal sorte que tanto o
analista quanto o analisando vão se constituir em espectadores, isto é,
espectadores do que se passa entre o inconsciente e o Outro.
Nesta alegoria está implícita a
crítica que Lacan faz à concepção da análise como um processo dual. Crítica que
é particularmente explícita num outro texto de Lacan, A direção da cura, datado
de 1958, onde ele procura mostrar que a operação analítica supõe quatro termos.
“Isto não impede que se acredite fazer um progresso com este douto propósito:
que a psicanálise deva ser estudada como uma situação a dois… a situação assim
concebida serve para articular os princípios de uma moldagem do Eu dito fraco.”
Na verdade não há dois, há
quatro termos. Primeiramente, porque a pessoa do analista sofre um
desdobramento. O que significa dizer que ela é o suporte das fantasias do
analisando, razão pela qual ao analista só cabe interpretar a transferência de
que ele é o suporte. Já aqui nós vemos que não há como reduzir a análise a um
processo dual, vemos três termos se evidenciarem — o analisando, o analista e o
termo correspondente ao desdobramento que a pessoa deste sofreu. A este termo
Lacan dá o nome de Outro, com O maiúsculo, dizendo que o analista deve
interpretar do lugar do Outro. Portanto: analisando, analista e Outro, termos
que supõem um quarto termo para tratar-se efetivamente de análise, qual seja o
inconsciente.
Assim, o analista interpreta do lugar do Outro para fazer surgir o quarto termo, o inconsciente de quem o analisando vai ser o parceiro.