"Os poetas são aliados valiosíssimos e seu intermédio deve ser levado em alta conta, pois conhecem muitas coisas entre o céu e a terra cuja existência nem sonha a nossa sabedoria acadêmica." (Sigmund Freud)
Há uma realidade não abarcável pela razão humana. De que
modo captá-la? Freud se acerca de Lou Salomé e
de Rilke. Apropria-se da alma grega, através dos mitos e lendas. Édipo,
que perdera a vida duas vezes, uma para os deuses e outra para os homens, a
recebe multiplicada. A visibilidade tem a dobra, a sombra, a nervura, a
cicatriz. A visibilidade requer olhos para dentro. E o inconsciente emerge dos
sonhos, de falhas e lapsos, dos sintomas, como também das figuras de linguagem.
A pessoa necessita ser escrita através de metáforas que desvelam velando. A
“luz intelectual” não é suficiente. Fazer emergir algo pulsante, anterior ao
pensamento.
E, se o criador da psicanálise traz à tona o
inconsciente através dos sonhos adormecidos, a poesia é o sonhar com os olhos
abertos. Arrancar um coração de pedra, reprimido, por um coração de carne,
bradava o profeta Ezequiel. E buscar, como quer Maria Zambrano, a metáfora que
parte das entranhas, com a luz enternecida da poesia. Desde a cavidade escura,
com os olhos do assombro. A víscera secreta e delatora: o coração. A crisálida
noturna liberando as asas das forças que nos inibem através do duplo movimento
da sístole e da diástole. Desde o coração em chamas de Sócrates – e suas
perplexidades – ao coração em chamas dos românticos.
A nobreza da poesia: uma interioridade que se abre. Entrar
para sair.
Dizia-nos Quintana: “Sonhar é acordar para
dentro”. Acordar a interioridade para a diástole do sair, o sangue venoso
libera-se oxigenado pelas artérias da generosidade. E a generosidade não é
estanque, não se fecha em si mesma. E também não é passiva, pois contém a raiva
dos justos. Essa que não aceita o homem como objeto, aviltado e denegrido pela
usura e pela violência, quando não se pode deixar de ver a deformação que a
poesia aclara.
A nobreza do ser humano, consolidar uma comunidade fraterna
do mais belo poema: o bem comum.
A poesia põe sol também no
imperceptível. E compartilha com o leitor esse desdobramento, fazendo-o autor
do iluminado, quando participa do risco da solidão da obra: abrir uma visão de
mundo, criar outras possibilidades, como querem Holderlin e Ricoeur. Sonhar e
sonhar poeticamente, isto é, de olhos abertos, não é apenas uma alternativa
para um grupo restrito de pessoas. É um direito de cada criatura, como o pão e
a moradia, a saúde e a educação, transformando-a em criadora, pois o homem, no
dizer de Bachelard, “é uma criação do desejo, não uma criação da necessidade”.
Ao sonhar com os olhos abertos, imprimimos outro ritmo aos
passos, inauguramos outra atmosfera, respiramos outro ar e somos mais intensos
em tudo o que fazemos. Continuamos seres precários e passageiros, mas
intensificamos o existir, marcamos a efemeridade com mais poesia. A solenidade
do precário. As coisas mais comezinhas são grandiosas, ao perceber a vida em
todas as suas manifestações.
Empédocles de Agrigento apontava como as matrizes do
cosmos, quatro raízes ou elementos primordiais: o ar, a água, a terra, o fogo.
A simpatia humana gera a irmandade dos elementos. E conhecer poeticamente é
transformar, pois o objeto do conhecimento poético sempre está em fluxo, em
devir. A metáfora é um deslocamento de sentido. O discurso científico verifica
a realidade. A poesia vê o movimento em repouso e o mover-se da quietude. A
beleza ou a sua ausência, a figura e a desfigura, o amor e o desamor,
necessitam de um lento abrir de olhos, um demorar-se, próprio da poesia. A
paciência ardente de Rimbaud, destacada por Neruda em seu discurso ao receber o
Prêmio Nobel. Uma leitura inerte da vida não percebe as alegrias da terra. Como
afirma Miguel de Unamuno: não há maior imaginação do que a realidade. A
realidade sonhada.
Esse liame que a poesia estabelece de poeta a poeta, de
geração a geração, de cidadão a cidadão do mundo, tece uma teia sem dono, cuja
autoria é a própria vida. Assim como houve um livro, apenas um livro a guiar um
povo errante, temos o sonhar acordado inserindo um fragmento na constelação do
desejo para aclarar o firmamento de uma ética comunitária. O poeta sonha e se
despede para o ingresso de outro sonhador. Toda a metáfora é uma trindade: nome
gerando outro nome, rosto despertando outro rosto e o voo da Pomba da Paz.
A linguagem é a morada do homem. A linguagem está enferma.
Sua cura ocorre com a união da poesia à prosa da existência.
Vamos construir, com mais poesia, a morada do homem.
Por Maria Carpi
Poeta e defensora pública, autora, entre
outros, de “O que Resta Está por Vir” (AGE, 2019)
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2022/06/literatura-e-psicanalise-uma-viagem-humana-cl4pjuxkd000y0167fa6smldf.html