Enquanto criava e desenvolvia
as bases teóricas e práticas da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939) se
correspondia e participava de encontros com colegas e discípulos. O grupo que
se constituiu em torno dele promoveu congressos regulares a partir de 1908 e
formou a Associação Psicanalítica Internacional, presidida pelo mestre. Das
ramificações desse núcleo surgiram as gerações posteriores de psicanalistas.
Uma delas tem como principal representante o médico francês Jacques Lacan
(1901-1981). "Numa época em que a psicanálise buscava fundamentações na
Biologia, Lacan escolheu a lingüística e a lógica para reconfigurar a teoria do
inconsciente", diz Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Lacan retomou a obra de Freud
ao lidar com conceitos como inconsciente, identificação e Eu (ego), se apoiando
em outros autores, principalmente filósofos (leia o quadro na página 28). Ele
rejeitava a tendência de considerar o ego como a força dominante na estrutura
psíquica do sujeito. Afirmava, em vez disso, a impotência do Eu frente ao
inconsciente. Para ele, o sujeito opera em conflito eterno, e a situação só é
sustentável por meio de artifícios, entre eles a alienação.
Na busca de uma prática
psicanalítica que conseguisse abordar os mecanismos do inconsciente, Lacan
chegou a seu mais famoso aforismo: "O inconsciente é estruturado como uma
linguagem". A linguagem passou a ocupar o centro de suas preocupações e de
seu trabalho clínico e teórico (leia biografia no quadro acima). Foi nesse
aspecto que se deu sua maior contribuição para a Educação.
Profusão de conceitos
Qualquer que seja a abordagem
ou a aplicação da obra de Lacan, contudo, é importante ter em mente que o
ensino e a transmissão de seus conceitos e suas pesquisas foram primordialmente
orais, dando-se por meio de seminários e conferências, a maioria transcrita e
publicada em livro. "Há uma profusão de idéias lacanianas: invenções,
fórmulas, aforismos e noções que tornam a leitura de seus textos uma verdadeira
aventura pela cultura ocidental", diz Dunker. Lacan ainda concordava com
Freud em relação à impossibilidade de aplicar a psicanálise em outros campos,
inclusive a Educação, que também opera no terreno movediço da linguagem e da
interação.
No caso de Lacan, a teoria
torna o entendimento das funções da linguagem ainda mais complexo. Enquanto
para Freud o inconsciente era, grosso modo, uma instância individual, para
Lacan ele sai do sujeito (indivíduo) para abarcar uma rede de relações sociais.
Ou seja, à noção do sujeito dividido, soma-se também o conceito de Outro,
podendo esse ser entendido como uma combinação dos sistemas simbólicos e
socioculturais.
No campo da Educação, Lacan
procurou elucidar a dinâmica entre o Eu e as instituições sociais, onde a
escola se insere. "Ele constatou que certas mudanças na cultura implicavam
a redefinição das teorias freudianas de gênese da personalidade", diz Leny
Magalhães Mrech, professora da Faculdade de Educação da USP, referindo-se
principalmente ao complexo de Édipo. "Assim, Lacan identificou que não
estamos mais em uma sociedade orientada pela figura do pai."
Segundo a educadora, isso quer
dizer, entre outras coisas, que as relações sociais - antes hierarquizadas com
grande rigidez, agora se distribuem de modo mais horizontal. "O pai, o
professor e as demais figuras de autoridade perderam o lugar simbólico de poder
e excelência", afirma. "E essa é uma das bases do modelo de escola
participativa, na qual o aluno assume um papel mais central." Leny Mrech observa
ainda que, antes da psicanálise, a Pedagogia não percebia a importância e o
significado da fala do professor e do aluno e pouco se preocupava em escutar as
crianças. Por isso, os conhecimentos provenientes daquela área do saber
ajudaram a perceber e explorar alguns fenômenos que acontecem na vida escolar,
como a resistência de alguns estudantes em aprender e de alguns professores em
ensinar certos conteúdos. "O ensino não é mais concebido de forma ingênua
e, com base nisso, tem-se a certeza de que não é possível haver a transmissão
integral de conhecimentos", diz Leny.
Na teoria lacaniana, também
ocupa lugar fundamental a noção de gozo: "Ele é uma mistura de prazer e
insatisfação - ou também pode ser de dor e satisfação -, que nos torna apegados
a formas de relação conhecidas como sintomas, inibições ou angústias",
explica Dunker. Ele ressalta que, nesse sentido, a linguagem também se
constitui um lugar de gozo. O conceito é trabalhado por Leny Mrech em seu
trabalho teórico em Pedagogia. "Lacan nos revela que tendemos a funcionar
por inércia e que não há um verdadeiro desejo de saber", diz.
"Dificilmente o professor procura trabalhar com novas possibilidades de
gozo dos alunos. Por isso, não é de estranhar que um dos sintomas da cultura
atual seja o fracasso escolar provocado pelo desinteresse."
Biografia
Ideias influenciaram
intelectuais
Jacques Marie Émile Lacan
nasceu em 1901, em Paris. Formou-se em Medicina e se especializou em
psiquiatria. Seus primeiros estudos de casos o levaram a formular a teoria do
"estádio do Eu" (processo de reconhecimento pelo qual passa a criança
ao se observar no espelho). Em 1934, casou-se com Marie Louis Blondin, com quem
teve três filhos. Em 1941, nasceu sua filha com Sylvia Maklès-Bataille,
ex-mulher do escritor Georges Bataille (1897-1962). No ano seguinte, separou-se
de Blondin. Seus seminários e suas palestras influenciaram o meio cultural
francês. Lacan teve relações tensas com as associações psicanalíticas de seu
país. Tornouse polêmico, entre outras coisas, pelo folclore criado em torno de
seu hábito de receber pacientes em sessões que muitas vezes duravam apenas
alguns minutos. Morreu de câncer em Paris, em 1981.
Os caminhos de Lacan
O Eu, a história e as
estruturas sociais
Embora formado em medicina, Lacan só teve seu primeiro contato com a psicanálise por meio dos artistas do surrealismo, como Salvador Dalí (1904-1989), que procuravam representar as manifestações do inconsciente. Ao se aproximar da prática analítica, o médico freqüentou, como muitos intelectuais franceses, um curso do russo Alexandre Kojève (1902-1968) sobre o filósofo alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831), fundamental para sua concepção de sujeito descentralizado. Tanto Hegel como Lacan rejeitavam a identificação do sujeito somente com o indivíduo, buscando-o também na história e nas estruturas sociais. Em 1951, ele propôs um retorno a Freud, utilizando a lingüística do suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) e a antropologia estrutural do francês Claude Lévi-Strauss. Tornou-se importante figura do estruturalismo - corrente que defendeu a supremacia das estruturas sociais sobre o homem como objeto de estudo das ciências humanas. Posteriormente, Lacan abriu o leque de referências teóricas, chegando à Matemática e à lógica. Essa amplitude contribuiu para que o lacanismo tenha influência em várias áreas, em especial na estética e na comunicação. A obra de Lacan está reunida nos livros Escritos e O Seminário, constituídos de transcrições das aulas que ministrou, a partir de 1953, em sua casa, na Escola Normal Superior e na Sorbonne, sempre em Paris.