Apesar desta Entrevista com
Lacan parecer ter sido realizada na década de 1790, ela foi publicada
originalmente na Biblioteca Salvat sem data definida. Preservamos aqui sua
estrutura intocada.
Jacques Lacan representa uma
renovação da psicanálise, tanto no nível teórico como prático. Para ele, a psicanálise
tem somente uma interpretação possível: a linguística. No centro da teoria e prática
psicanalíticas encontrar-se-ia o inconsciente, fonte dos fenômenos patológicos.
Assim, a cura psicanalítica levar-se-ia a efeito mediante a manifestação do
inconsciente através dos sintomas. Desse modo o grande problema, a grande
tarefa a cumprir pela psicanálise reside em descobrir as leis através das quais
se rege o inconsciente, leis que só podem descobrir-se pelo estudo das manifestações
daquele.
Os sintomas psicanalíticos
seriam as obsessões, as fobias etc., linguagem cuja clarificação corresponde psicanálise,
já que a linguagem desses sintomas não outra coisa senão a linguagem em que falam
as enfermidades psíquicas. Se os sintomas não se articulam em palavras,
permanecem obscuros. Por isso é necessário que os sintomas se manifestem em
palavras.
A tarefa da psicanálise,
segundo Lacan, será decifrar a linguagem para poder alcançar o inconsciente, no
qual se elaboram e estruturam as realidades essenciais do indivíduo, e foco de
que derivam por sua vez os fenômenos patológicos. Por outro lado, o sintoma não
é um sinal linguístico, capaz de dirigir a mente para uma realidade
determinada. A natureza dos sintomas exige sua minuciosa análise e descoberta,
tarefa para a qual a linguística oferece os instrumentos que hão de permitir
penetrar em sua investigação.
Em resumo, para Jacques Lacan,
a quem entrevistamos abaixo sobre alguns complexos aspectos atuais da psicanálise,
a interpretação linguística e a autêntica interpretação de Freud. Como ele próprio
afirma: Mostraremos que não há palavras sem resposta, inclusive se não
encontram senso silêncio, desde que tenham um ouvinte, e que este é o miolo de
sua função na análise. Sua contribuição
foi e o centro que ocupa a atenção de amplos setores culturais relacionados com
a psicologia e a filosofia; porém, por outro lado, afastaram-no definitivamente
da ortodoxia psicanalítica.
Tem-se falado de uma mitologia
da psicanálise. Qual é sua opinião acerca disso?
Lacan: São muito fortes os
mitos que os psicanalistas criam dever reverenciar para se fazer admitir na boa
sociedade de há tempos atrás, na época em que eu comecei a tarefa de dissolver
esses mitos.
Isto não significa que tais
mitos não fossem vivos. A tradição o prova. Os mitos provêm de uma certa
economia do prazer. Porém vão mais além. O que se chama universidade
encarrega-se disso, seu papel é conservar esses mitos. Dir-me-ei o que o próprio
Freud parece sacrificar-se aos mitos. E certo, sacrificou-se a eles; não podia
fazer outra coisa, se queria ser admitido.
O senhor é o porta-voz de
Freud? Sua escola é freudiana?
Lacan: Eu parti de Freud para
me confrontar com aqueles que diziam assumir a psicanálise em nome de Freud e
que extraíam proveito dessa prática.
Vi-me obrigado a dizer-lhes que
sua prática psicanalítica ou era um engano ou se limitava a fundamentar-se num
jogo de palavras com efeito momentâneo. Eu opinava que: Se com vossos pacientes
- dantes chamavam-lhes assim - a única coisa que podeis intercambiar são
palavras, ao menos estabelecei vos próprios as regras.
A função da palavra só pode
explicar-se ao definir o campo da linguagem. Esses dois termos são o título de
um discurso que pronunciei em Roma, em 1953, e do qual surge minha escola,
depois de muitas dificuldades.
Minha escola é freudiana, e
isso não deve estranhar, já que demonstrei claramente que os testemunhos
fornecidos por Freud acerca da existência do inconsciente, dos sonhos, dos
lapsos e ocorrências, só são interpretáveis sobre o texto do que se diz através
da palavra do próprio interessado. Este é um fato patente nas trás obras que
Freud escreveu sobre cada um desses temas e que constituem o ponto de partida
de seu pensamento.
Minha escola deve, portanto,
ser entendida como freudiana no sentido de baseada em Freud. Hoje, Paris é o único
lugar em que há analistas que, sem desdenhar as práticas da medicina, sabem que
esta não lhes serve de nada.
A fundação da minha escola
tinha, entre outros, o objetivo de clarificar posições com a pretensa
internacional psicanalítica, cujos problemas se debatem num ambiente sórdido.
Segundo o senhor, há psicanálise
assegura-nos que existe sob o termo "inconsciente" algo qualificável,
acessível e capaz de ser objetivado. Que é, pois, o inconsciente?
Lacan: Antes de mais, convém
esclarecer que o inconsciente não é uma aspiração da alma, nem uma recordação
da infância, nem uma regressão do desenvolvimento psíquico. Considerá-lo assim
seria o mesmo que reduzi-lo aos mitos clássicos de que se nutre a psicologia
uni a vestiria.
Á primeira vista, o nome parece
não estar mal escolhido. O inconsciente é o não-sabido de um saber, quer dizer,
um saber que não tem sujeito, um sujeito que saiba.
A partir dela podemos
clarificar seu nome: o instinto. É com este nome que desde sempre se designa um
conhecimento cuja evidência choca com a realidade animal. Um animal que sabe
picar sua presa num lugar exato do corpo, para a paralisar, conhece a anatomia
da presa? Não nos atrevemos a crê-lo. Por quê? Por que não pode ele conhecer a
anatomia do adversário? Por que os animais sabem ocultar uma cria de que não
podem cuidar para a proteger o tempo necessário para que se desenvolva?
A que se baseia a interpretação do instinto
que os psicanalistas falseiam em todas as línguas, ao traduzir o que Freud
designou com a palavra Trieb (impulso, pulsão), que em inglês se traduz
bastante bem por drive (coisa que se evita), e em francês por derive, o que é
uma solução transitória e desesperada até que se consiga dar a palavra seu
cunho ideal.
Prefiro deixar que o descubram
os que me leem. Em certas ocasiões designo-a como alonga, e note-se que reúno
as duas partes numa. Essa maneira de a escrever é uma chave pessoal para
designar o que é o objeto da linguística. Um entre muitos.
O conhecimento do que há no
inconsciente é um conhecimento que se articula de um ou vários alonga. É um
saber que o existe ao indivíduo, quer dizer, que o concerne.
O conceito é inconsciente (Freud
duvidou de seu nome) está longe de exprimir a verdade. O inconsciente é apenas
saber, saber articulado numa forma linguística.
O ser falante embrutece-se com
a ideia do instinto ao atribuí-lo aos seres que não sabem falar, aos animais,
segundo ele.
Que foi que Freud não captou em
sua tarefa de análise? Não abusemos do gênio de Freud. Inclusive o gênio
necessita do favor do céu para aparecer.
A ciência desceu do céu, isso é
tangível na história. É essa inclusive a única objeção que se lhe pode fazer. A
besta humana é da Terra, como observava Pascal, e essas maravilhas que agora
deve a ciência e que reverencia - muito em breve se dar conta de que não lhe são
mais do que estorvo. Sem embargo, ter de acostumar-se.
O que talvez Freud não tenha
considerado é que a ciência tem seus limites: essa é sua principal debilidade.
Sua esperança na sexologia cósmica, quando precisamente sua experiência lhe
demonstrava que o saber do inconsciente é o que o ser falante inventa... para
satisfazer os deveres de sua reprodução, talvez.
Era-lhe necessário inventar
esse inconsciente, para responder ao mal-estar de sua cultura, provocado pelo
advento da neurose como tal.
Antes, nunca se falara de nada
parecido. Todos se banhavam na verdade do pecado original. O amor, o verdadeiro
amor, tinha de estar em outra parte, fora do sexo. Poderia dizer-se que se
escondia algures. Só se falava de uma divina comédia, porém na condição de as
mulheres estarem o mais longe possível.
Tudo isso evidencia o fato de
que se não queria saber nada do inconsciente, que era coisa temida. Apriorismo
justo, já que o inconsciente nada tinha a fazer nesse colóquio do amor louco.
E esse é nosso destino, ter de
inventar o inconsciente! E sublinho: nós inventemo-lo. Aquilo que nós descobrimos
(não inventamos) é unicamente seu lugar, e que está ali desde sempre, disso não
há dúvida, porém por explorar.
Qual é o fruto de seus cursos
sobre o sujeito e que contribuição traz ás teorias freudianas?
Lacan: Indubitavelmente, não se
pode dizer que Freud tenha esgotado o tema, porém completá-lo é difícil. De
momento, os cursos que tenho dado sobre o tema limitam-se a desvelar o
problema, porém só para que o sonho prossiga melhor, concretamente o sonho dos
que queriam revolucionar o mundo, já que nele creem. De fato, meu discurso é a única
oportunidade para que a psicanálise volte a funcionar.
Quero dizer que só a força de
testemunhar a verdade, tal como se apresenta na confissão que a cada um se
oferece pela experiência analítica, o analista logra fazer sair de seu discurso
uma invenção de saber, capaz de proporcionar um resultado, um fruto que seja um
prazer para todos e para essas não-todas que são as mulheres em seu acesso ao
fato patente de que o ser falante é o único a autorizar-se na escolha de seu
sexo.
Foi daí que partiu Freud ao escutar as históricas: cada uma delas queria que o homem exista, a título de é pelo-menos-um.